segunda-feira, 28 de junho de 2010

Pare. Atenção. Siga.

Enfie a chave na fechadura. Isso. Agora abra a porta. Antes de sair, não se esqueça de verificar se não está sem roupas, como aconteceu naquele sonho que te deixou até hoje na paranóia. Verifique se você não esqueceu a chave do lado de dentro, se você não saiu sem carteira de identidade, sem dinheiro, sem o celular, sem o cartão do plano de saúde. Verifique se você não está esquecendo de verificar nada. Note que você sente como se algo estivesse faltando.

Aperte o botão do elevador, fique angustiado com a demora dele. Depressa, depressa. Bata os pés no chão impacientemente. Abra a porta do cubículo de metal, entre, dê bom dia para vizinho do oitocentos e dois, mas não puxe conversa com ele, ele pode te achar mala. Faça cara de pessoa séria, que durante a juventude nunca acordou de ressaca num meio-dia de quinta-feira, na praia, com um homem desconhecido inconsciente ao lado, e cercado de gente que te olha torto, você sem lembrar de como tinha ido parar ali. Antes de sair do elevador verifique no espelho a roupa, os dentes, se irrite com os fios de cabelo brancos vencendo a batalha contra a tintura. Prenda a barriga.
Encare o sol, sinta o puta calor, xingue a mãe de alguém (mas sem ninguém – especialmente o tal filho da mãe em questão – perceber). Ande rápido a ponto de não chegar lá e o banco estar fechado, mas não tão rápido a ponto de parecer louco. Não se esbarre com pessoas na rua, não pise no pé de ninguém, isso, não encare ninguém, não fale com desconhecidos, olhe para os dois lados antes de atravessar, espere o sinal, não respire fumaça do escapamento dos ônibus, sinta o calor, pragueje, cuidado com os ladrões, nunca, nunca, nunca converse com um desconhecido sem ninguém a mais além de vocês dois na rua.
Ao entrar no banco, faça cara de quem é rico. Cuidado na hora de retirar tudo do bolso pra fazer o depósito, pra que nada caia no chão e se perca ou seja embolsado por algum esperto. Extrema atenção ao preencher o envelope pra não colocar nenhuma informação errada. Não aceite orientação de estranhos, não forneça a sua senha a ninguém. Entre na fila, atenção para não tentarem entrar na sua frente. Não olhe para o monitor do caixa eletrônico quando os outros estiverem usando. Não mantenha nenhuma forma de comunicação não referencial com qualquer um no recinto. Aguarde sua vez. Fique entre as linhas amarelas pintadas no chão, respeite o seu harmonioso movimento de zigue-zague. Agora é sua vez, ande. Isso. Muito bem. Deposite o dinheiro. Rápido, o tempo vai acabar, três vezes e eles cancelam o cartão. Saída. Faça cara de quem não tem dinheiro, quando chegar lá fora. Sabe-se lá se tem algum ladrão à espreita.
Voltando pra casa, ignore sua fome: não coma porcarias na rua. Passe na frente da casa de seu amigo e nem sequer pense em entrar, você está até o pescoço de coisas para fazer. Não olhe pra aquela pessoa gostosa vindo lá de mãos dadas com alguém, não olhe. Não olhe. Não olhe. Não olhe. Olha o sinal, cuidado. Isso. Sinta que a temperatura dentro de sua roupa está maior que fora, veja que sua roupa está molhada de suor, grudando no corpo, duas manchas de suor nos seus sovacos, reze por uma chuva redentora que não virá. Você não tem dinheiro trocado algum no bolso, finja que não viu o mendigo. Encare o porteiro de seu prédio pra prová-lo de que você é você. Agüente a tortura de ter que manter-se de pé ao esperar o elevador. Reze pra que ninguém entre com você naquele forno apertado.
Enfie a chave na fechadura. Isso. Bonitinho. Agora abra a porta com cara de sobrevivente de guerra, feche a porta quando entrar, passe o trinco – não se esqueça de passar duas vezes – passe o pega ladrão. Se jogue no sofá, nojo do próprio corpo – o suficiente para precisar de um banho, cansaço o suficiente pra não ter coragem de levantar. Pense no dia de afazeres de amanhã. Note que você, por mais que fique em casa, no sofá, na frente do ventilador, na frente da tevê, nunca chega a descansar totalmente.
Não me pergunte por que. Não se pergunte o porquê.

Por Cassandra

7 comentários:

  1. Muitas Vezes estamos assim no mundo só vivendo sem questionar nada.
    Show de Bola o texto!

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  2. Eu encaminhei minha leitura no final do texto pra oooutra coisa, pra não ficar chato, digamos assim,
    e pelo ritmo do texto, rápido, frenético, fragmentado, parece um coito. Cassandra. para - vê o desconhecido - com atenção põe o preservativo e segue. melhor assim. Essa (para)nóia não me agrada

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  3. Muito bom o texto! ;**
    Ítala

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  4. Já disse que gostei pacas!!!
    Muito bom mesmo...

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  5. Gostei demais desse texto.

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