sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O Carteiro - Parte 1

Eu não espero resposta.
Sentei na poltrona puída que um dia fora dia foi meu bisavô e me recostei no encosto encardido de suor e poeira. À medida que eu recostava e inclinava pra trás pude ver meus pés e o curativo que cobre a inflamação causada por uma unha encravada. A estante que há anos foi preenchida por livros agora guarda um vazio nostálgico e uma memória em aquarela, mas de todas as coisas que um dia esteve ali, com certeza uma ainda está lá: as cartas.


Atrás dos meus pés e do meu dedo moribundo uma escrivaninha de mogno também muito velha, mas em bom estado de conservação, a não ser por alguns buracos de traça, e sobre ele minha velha máquina de escrever Olivetti azul que às vezes revezo com meu computador na minha incessante procura pelas palavras certas. Imagino que um texto escrito por uma máquina de escrever me deixa mais convencido de que a pessoa que receber a carta a lerá com mais atenção, além disso, confesso que essa forma me transmite um pouco de charme e morbidez.

Peguei o controle remoto que estava no braço da poltrona e liguei minha TV de plasma imaginária, e fingi com toda minha sinceridade, uma indignação e inconformismo com o caso da jovem que deixou o namorado trancado em casa por muito tempo, pois ele havia supostamente a traído. O mau cheiro chamou a atenção dos vizinhos e a polícia foi acionada. Os policias chegaram ao apartamento que os pais deram a ela por ter passado na melhor universidade e não a encontraram lá, então invadiram a residência e encontraram o namorado dela na gaveta do armário.
Ao ser surpreendida pela polícia e pela reportagem a moça desandou a chorar. Quando foi algemada a repórter colocou um microfone a centímetros do rosto da moça - que se chamava Gabriela Nunes - numa tentativa de que ela, a jovem, falasse algo e alto. Antes de desligar a tv pude ouvir uma suave e rouca voz desabafar: “ele falou que iria contar ao meu namorado...”.

Pensei falar sobre esse assunto na próxima carta que eu escrever.

Respirei fundo e senti a velha e incômoda dor provocada pela moto que me atropelou quando eu me despedi da minha mulher. Fui à cozinha para beber água, mas convenientemente me esqueci o que fui fazer e acabei tirando da geladeira um resto de comida chinesa que deixei no prato a uns três dias.
Olhei pra pia e pensei em lavar a imundice sobre ela, mas com tantas imundices na minha vida uma louça suja é coisa pouca.
Comi vagarosamente. Numa mastigada, uma dor me fez perceber que deveria ir ao dentista. Antes de sair da cozinha ajeitei os 18 ímãs na porta da geladeira até formar um rosto que me fez lembrar a moça de dois namorados.

Voltei à sala e me ajeitei mais uma vez na poltrona aproveitando cada segundo centímetro de tecido. Tornei a pensar na moça de dois namorados e isso, sem muita explicação, me fez lembrar da minha viagem de lua de mel à Campos do Jordão. Adormeci sorrindo.

Por Lima Limão

5 comentários:

  1. Qual é papel do Carteiro em um mundo onde não mandam cartas?

    Texto Incrível!

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  2. Enquanto uma narrativa leva-nos adiante dentro do desenrolar das estórias - interessantes ou não. A descrição bem trabalhada, tal qual esse texto trás, faz-nos viver e sentir cada passada, cada segundo demorado de seu desenvolvimento bem trabalhado.

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  3. Muito envolvente!Pensei sobre e vi o quanto nos deixamos levar pelos problemas dos outros. Em como desenvolvemos sentimentos de piedade, afeição, raiva, sem ao menos conhecer a pessoa que aparece na mídia. Como se fossemos parte integrante de suas vidas. Simplesmente porque somos humanos

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  4. Achei muito massa, embora não tenha entendido o título.

    =[

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