sábado, 25 de setembro de 2010

O Quarto

Em cima do garfo espetado num pedaço de carne ela conseguiu equilibrar a faca. Porque às vezes realizamos atos inimagináveis quando estamos automaticamente fazendo coisas e nossas mentes viajam a quilômetros dali. Assustada com a cena quase impossível realizada à sua frente ela volta ao plano físico e abre um sorriso maravilhado (aqueles que as crianças sempre abrem, e os adultos, só quando não conseguem se conter). Sustenta os braços semi-estirados no ar e prende a respiração para não derrubar o conjunto tão delicado que fora formado ali.

Almoçava sentada na cama de seu quarto, em frente a uma pequena mesa, assistindo à tv ligada num canal qualquer. Cabelo ainda molhado e corpo ainda fresco do banho tomado havia recente. No apartamento vazio só os ecos da TV e da existência da moça jovem. No que pensava ela antes da demonstração de equilibrismo da faca: a carta que estava dentro da gaveta da escrivaninha, destinada àquela amiga do colégio que há muitos anos não via. O ventilador quebrado carecendo de conserto ("Antes de chegar o verão vou consertar, que meu quarto é muito quente"). O emprego chato que enfrentaria depois de alguns minutos no engarrafamento das doze. O (muito) tempo que tinha sem fazer sexo. Uma brincadeira antiga de criança. O celular novo que ainda estava sem contatos na agenda. Esboçava um pensamento sobre a parede do quarto com o banheiro que estava com infiltração e descascando tinta quando a faca suspendeu o devaneio da moça.
Ainda com a respiração presa e braços levantados viu de relance no relógio do criado-mudo a hora, que já ia avançada. De um salto pegou a sua bolsa, calçou o sapato e saiu.
O apartamento fica no silêncio total, nenhum barulho se ouvia. É certo que a televisão estava ligada - mas não é deste barulho que estou falando.
O relógio marcou seis horas, e depois sete. O silêncio ainda reinava. As oito o jornal noticiava algo sobre um massacre na cidade. Golpe de estado, resposta de estudantes, morte dos revoltos e de transeuntes. Na imagem congelada dos corpos podia-se, com muita força de vontade aliada a uma boa visão e um pouco de sorte, achar a moça que não conseguira nem sequer chegar ao trabalho, cabelo molhado de sangue, corpo frio pela morte. Nem o pedaço de carne, nem o garfo, nem a faca se emocionaram com a cena.
Pela televisão os móveis, objetos, eletrodomésticos, testemunhavam. Através de plantões urgentes inseridos em programas infantis, programas sobre pesca e novelas os jornalistas afirmavam que o país estava em estado de sítio. Barricadas no meio da rua. Os restos da comida no prato já haviam apodrecido e secado quando o país foi invadido por outro. O comentarista da madrugada disse que isso aconteceu por causa de bens minerais, mas o jornalista do meio-dia dizia se tratar de uma tomada política, para terminar os conflitos. Os conflitos não terminaram, outros países entraram na guerra, disse o novo comentarista da madrugada. Agora a maioria da programação falava sobre o assunto, mostrava centenas de pessoas fugindo de suas casas para morar em outro país, em outro lugar. Do quarto não se ouvia mais o barulho dos vizinhos. Teias de aranhas desciam do teto, amontoavam-se pelos cantos, escondiam-se atrás e abaixo dos móveis. Foram seis meses após a moça - a mulher - ter ido embora do quarto que houve um atentado terrorista que matou o repórter, ao vivo. Sete meses que os âncoras anunciavam a guerra nuclear. Oito que a TV sai do ar, e no quarto só reverberava o som do chiado. Nove que a energia foi cortada e a TV não mais fez sons.
O tempo passou e gastou toda a corda do relógio, que parou. A poeira decantava-se em cima de tudo, o cheiro de mofo subia. E mais tempo passou. A parede do quarto com o banheiro piorava, e o chão estava cheio de tinta que caía. Cupins comiam a madeira dos móveis, as traças comiam os papéis, a umidade oxidava dobradiças, parafusos, as placas do computador. Antes da cama desabar, a carta para a amiga, que era recheada de nostalgia e esboçava um desejo incontido de um reavivamento da amizade, foi transformada em pó. O problema do ventilador era mal contato de um fio, que com o calor teve a capa de plástico derretida, e solucionado o problema (mas ninguém estava lá para usá-lo). O computador inutilizou-se, e os filmes de comédia romântica, os clipes prediletos daquela mulher dona do quarto e a discografia do Bon Jovi foram perdidos para sempre. O mesmo aconteceu com o celular novo, que foi inutilizado sem o nome de ninguém na agenda quando sua bateria explodiu. O lugar estava envelhecendo e lá, único lugar no mundo onde aquela moça era mais do que uma estatística da guerra, ainda, asseguro-lhes, havia o cheiro dela, mesmo que por trás do pó, mesmo que por trás do mofo, dos insetos, da vida microscópica que agora depois de décadas reclamava o que era seu por direito.
Lá tudo apodrecia e se decompunha - menos a carne que segurava o garfo. Tudo morreu e caiu, mas a faca estava no mesmo equilíbrio quase mágico de quando ainda havia vida humana lá, era como se as moscas, por algum motivo, tivessem nojo da carne, é como se as bactérias preferissem roer aço a provar daquela matéria animal malabarista. E, mesmo improvável, aconteceu.
Pois eis. Pois que. Pois quatro mil anos depois de montado o prato pela minha tão querida moça, ainda estava lá a carne, formolizada (Força de expressão. Não quero aqui dizer que alguém, em plena guerra nuclear, entrou no quarto e pôs formol lá pra manter estável o trio mágico, não estou aqui a contar lorotas). A parede da infiltração estava ruindo, as vigas internas de todo o prédio inchavam de ferrugem, e o quarto pressentia que estava perto do seu fim. O metal do garfo e da faca tinha oxidado e criado uma frágil ligação que os transformou em um só. No que os humanos, se não tivessem se extinguido, chamariam de treze de março de oito mil cento e dezoito, houve uma tempestade que quebrou o vidro da janela do quarto moribundo. No outro dia pássaros entraram ali. Nos meses seguintes se instalou a vida vegetal no lugar. Mas mesmo assim, com tanta intromissão e tanto tempo passado, o quarto estava tão impregnado da alma da sua antiga moradora que quem entrasse ali e (se fosse possível) encontrasse-a no meio da rua alguns dias depois, teria uma poderosa sensação de que a conhecia de algum lugar.
Isso antes do prédio inteiro ruir.
Quanto aos talheres, não sei dizer se continuaram se namorando na corda bamba depois da demolição natural, pois ninguém estava mais lá pra ver - e eu já tinha morrido.

Por Moai

5 comentários:

  1. ja falei de outra vez que esse texto é de fuder.

    mas agora vou falar outra coisa:
    esse texto é de fuder!

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  2. NOSSA! Quanta sensibilidade. Não conheço paravra melhor para traduzi-lo: Incrível. Poderia usar também ... soberbo, estupendo, magnifíco... Mas todas ainda me causariam a mesma expressão de choque e silêncio.

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  3. esse texto é de fuder sou a maior fã desse texto!

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