sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Torto


em uma casa torta de uma rua torta, havia um rapaz torto.
ele era torto desde que nasceu, o pobre coitado. não podia segurar um copo sem que dele escorresse água pelas bordas. garçom seria a profissão menos ideal pra ele, já que lhe seria impossível segurar uma bandeja com algo em cima.


não era torto de deformidade, devamos salientar. não era um defeito congênito, nem defeito ósseo, muito menos muscular. não era desse tipo de torto que seria jogado em circos no século 18, que seria matado pelos pais na Grécia antiga. era apenas torto, e todos que olhavam pra ele pela primeira vez comentavam, ao menos mentalmente, de si pra si: "como é torto esse rapaz!".

tirando alguns incovenientes pequenos como segurar copos d'água, abraçar pessoas, equilibrar-se em pé em cima dum muro ou num ônibus em movimento, correr em linha reta, ele não tinha lá muitos contratempos por ser torto, exceto, talvez, um: pessoas. elas não encaravam lá muito bem a sua tortice.

- vejam só se pode um sujeito torto desse jeito!
- ô torto! que horas são?
- ele me dá tonturas.
- se eu fosse o pai dele, tinha dado um jeito nisso!
- ei, todos vocês, fiquem quietos, lá vem o rapaz torto.
- meu filho, não se aproxime desse rapaz, ele é muito desnivelado.
- é um menino tão bom... que pena que é torto!

claro que não eram todos. ele tinha vários amigos que adoravam sua torteza, alguns gostariam de serem iguais a ele. faziam muitas piadas agradáveis como compará-lo á torre de pisa. entortavam-se para abraçá-lo, adoravam a sensação de vertigem que sentiam quando iam à sua rua, ao seu apartamento. alguns deles até pensavam "puxa, queria ser torto como ele". e assim a vida ia.

depois de tanta torteza, e depois de tanto falarem contra ela, o rapaz resolveu ir num médico para tentar se curar de seu desnivelamento natural. escandalizado com o caso único à sua frente, o médico pareceu acordar da automação das doenças normais, meningite, esofagite, câncer, efizemas, espaticrosfagilogite, tão comuns e tão chatas de se ver todos os dias. empenhou-se a tenta achar uma cura. talas foram administradas para tentar pô-lo no eixo, mas elas entortavam-se em menos de vinte e quatro horas. deixaram-no horas numa sala, em pé, sendo puxado por cordas que, teoricamente, endireitariam-no. e nada, nada.

depois de outros experimentos com suas respectivas falhas, o médico calhou de desistir.

e assim prosseguiu a vida do torto por muitos anos e anos. e anos.

até que certo dia, nessas escritas tortas sobre linhas tortas da vida, ele conhece uma menina chamada parábola. e hoje eles estão juntos morando num prédio de esquina. ela, arquiteta, desenha casas tortíssimas; ele, escritor, escreve em origamis, e agora os dois não fazem nada além de planejar ter dois esquadros e um compasso e criá-los com carinho..


Por Moai

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