sábado, 19 de fevereiro de 2011

Tomai todos e comei, este é o meu corpo.

A cena é comprida.

Dentro duma roupa de astronauta o comandante Dave Bowman utiliza uma chave de fenda para, um por um, retirar os transístores, chips de memória ou não-sei-o-quê para desligar o computador HAL 9000. As 40 peças desplugam-se lentamente do painel. A cena é quase monocromática vermelha.
A voz do computador é lenta, monótona e sem emoção enquanto ele clama "I'm afraid, Dave. Please, stop. Dave, my mind is going. I can feel it.I can feel it. My mind is going. There's no question about it". Além disso, só se ouve a respiração abafada de Dave e um chiado, certamente vindo da nave espacial.

Dirigida por Stanley Kubrick para o filme "2001: A Space Odyssey", os três, tanto o diretor quanto o filme e a cena são considerados marcos históricos na cinematografia mundial. O filme, que tem três horas de duração, é uma experiência instrospectiva e surrealista que discute a evolução da raça humana; e por sua característica de lentidão insere o espectador no ambiente de gravidade zero, e o faz pensar e repensar, dissecar cada uma das cenas, como a acima descrita.

O filme foi lançado em 1968. "O filme é muito chato" é o comentário que eu ouço da maioria dos espectadores contemporâneos.

Arte é questão de gosto, claro, mas fico intrigado com a tendência atual das pessoas a não se divertirem com filmes com uma característica mais lenta. Cinema da década de 2000, e tudo indica que acontecerá o mesmo na década de 2010, é o cinema dos acontecimentos. Coisas o tempo inteiro pipocando na tela e na mente dos espectadores, intoxicando-lhes com tanta informação a ponto de impedir-lhes o direito sagrado de pensar, analisar.

É por isso que os museus estarão entrando em extinção. Num museu você entra e para diante de uma obra. Com um olhar de 30 segundos, dependendo do quadro, você certamente é capaz de enxergá-lo por completo e atribuir-lhe um valor, mas só com um tempo mais prolongado você é capaz de pensar sobre aquilo, discorrer mentalmente sobre aquilo, mesmo que não intelectualmente, mas sentimentalmente. Não que eu seja o maior fá de museus (inclusive acho que eles, apesar da valiosa função de conservar obras de arte, funcionam, na verdade, de forma a encarcerar as obras e limitar o acesso a elas), mas os citei por se tratarem de uma aventura sensorial, sim, mas principalmente transcendental, do espectador construindo em si a obra ali exposta. Hoje o que as pessoas querem é uma carga emocional quase injetada com seringa no cérebro, acontecimentos sufocantes o tempo inteiro, e uma obra de arte pronta, mastigada sem a necessidade de construção por parte de nós, que assistimos.

É assim em todos os tipos de arte. Música instrumental não faz sucesso, porque melodia é uma experiência muito pessoal, introspectiva e interpretativa. As letras fazem sucesso, não por sua poesia e capacidade de múltiplas interpretações, ou mas por sua capacidade de ser direta e de causar emoções fáceis e imediatas. A música moderna foca-se em voz. Ninguém assovia a linha de baixo da música que gosta. Os ringtones dos celulares quando polifônicos ou monofônicos (já ambos em extinção) sofrejam a melodia do vocal, o resto da música é enfraquecida, ou até suprimida. Sem, claro, falar na tendência já comentada por Cassandra aqui no 10temidos (http://10temidos.blogspot.com/2010/07/justin-bieber-menstruacao-e-vampiros.html) de vender-se projetos visuais de pessoas estilosas e bacanas, com a música como trilha sonora desse estilo.

Meu sonho é viver num mundo onde para um livro fazer sucesso ele não precise, necessariamente ter tido uma adaptação cinematográfica. Hoje isso acontece, talvez, porque as pessoas não precisam ter o esforço de imaginar as cenas, a geografia, ou o rosto de ninguém, dá até pra imaginar a trilha sonora enquanto se lê, mas acontece com certeza pelo fato de que a única forma de popularizar alguma coisa é com o cinema, a arte da realidade quase pronta, física (principalmente com o mundo pós-3D); livros e o seu mundo das idéias e da imaginação são coisas obsoletas há tempo.

E agora eu poderia enveredar o meu texto para uma opinião na qual as pessoas estão degeneradas, consumindo o tipo errado de arte. Que horror, que horror, meu deus. Mas não é o caso. É claro que a arte não tem uma função definida, e cada um a consome pelos motivos que quiser. O caso é que a relação que uma sociedade tem com a sua arte (por ser ela, tanto na produção quanto no consumo uma forma de expressão pessoal) explicita como essa sociedade reage com outros aspectos mais práticos da vida: Estamos nos focando no físico e no mediatismo, em detrimento do intelectual e o perene.

Trabalho numa escola de idiomas que se localiza ao lado de uma academia. A escola vai muito bem, obrigado, com um número sadio de alunos, mas com muito espaço para crescer. A academia tem seis vezes mais clientes, e está totalmente saturada (tente se matricular e você vai receber um sorriso amarelo seguido de uma frase começada por "infelizmente..."). Os atores da nova geração no cinema e na tevê chamam a atenção por sua beleza grega e sua incrível incapacidade de atuar convincentemente. Por fim, a escolha dos políticos nas eleições. Promessa que atrai é a construção de um trem, não a reforma do sistema de transportes. Os políticos são eleitos por suas promessas de construir hospitais, pontes, extrair ferro do solo e aumentarem salários, nunca por prometerem reformar educação, investir em cultura, e repensar a atual forma de distribuição de renda.

Há 42 anos atrás o filme de Kubrick mostrava a evolução física do homem. Mostrava que os humanóides que revolucionaram sua relação com o ambiente criando ferramentas conseguiram se transformar em seres viajando numa expedição espacial pra Júpiter (o filme foi gravado um ano antes de o homem ir à lua). Mas o ser humano é ambivalente, é um corpo E uma alma, e o desenvolvimento monovalente do lado físico acabou por lesá-lo (no filme, esse dano é representado pelo computador HAL 9000, mas hoje em dia ele se representa na forma da devastação ambiental possivelmente irreversível que vivemos). Celebremos, pessoas. Hoje conseguimos domar leões com as unhas e fazer leite jorrar do solo. A natureza que antes era inimiga agora é fonte de alimento e abrigo suficiente para todos. A evolução física foi produtiva e nos fez ser o que somos hoje, mas agora temos um caminho a trilhar. Caminhemos, pessoas. Nossa alma ainda é uma aventura quase inexplorada. Podemos fazer com o próximo o que fizemos com a natureza, e transformá-lo em amigo. Se hoje precisamos predar os iguais para nos alimentarmos de sua terra, no futuro poderemos produzir todos juntos. Caminhemos.


Por Moai

7 comentários:

  1. Compartilho do comentário acima!
    Sinceramente, escuto muito isso quando pergunto oq as pessoas acharam desse filme... é uma pena...
    Grande texto Moiai! Gostei muito mesmo!

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  2. Gostei!! vou tentar assistir o filme! :D

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  3. Concordo.Os museus estão sim em extinção ou pelo menos largados as traças. Os livros tbm, não lemos mais, se já ouvimos falar de alguma obra conhecida é pq vimos a versão cinematografica. Fora que todos querem sim uma injeção rápida de tudo, é por isso q o numero de usuários de qq tipo de droga só faz aumentar. è mais fácil acender um beck e cozinhar do que olhar ao redor, parar e sentir de verdade sem uso de drogas ou de qq outra coisa para facilitar.

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  4. (continuação) Além disso somos seres egoístas nós passamos por cima dos outros para encontrar a nossa tal felicidade, não importa em quem vc pisa ou não, o q importa é alcançar seu alvo.Reproduzimos aquela bendita frase de Maquiavel "os fins justificam os meios", que dane- se o próximo eu quero o q é meu, e traimos, enganamos, humilhamos, e machucamos todo e qq um sem distinção. Somos um bando de miseráveis que não sabe amar ninguem ou coisa alguma.

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  5. viva o download

    http://www.zoubidownloads.com/2009/12/download-2001-uma-odisseia-no-espaco.html

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  6. Moai, és um escritor extraordinário. Parabéns!

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